Batman em Campina (em três atos)

Vinicius Dantas
10 min readFeb 15, 2022

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1º ato

Paulinho ainda não conseguia acreditar que estava conversando com o Batman em pessoa.

Ele era um branquelo que integrava os Tropeiros, o primeiro grupo de super heróis campinense (segundo seus membros, ao menos). Eram uns oito jovens, entre os 17 e os 22 anos, que andavam de bicicleta pela madrugada pelas ruas de Campina Grande e tinham como objetivo combater o crime na cidade. Apesar de se considerarem super heróis, e até mesmo vestirem uniformes temáticos, eles não tinham absolutamente nenhuma qualificação ou instrumentos básicos necessários para combater qualquer tipo de crime. Vez ou outra ajudavam uma pessoa embriagada a chegar em casa. No geral, eram só um grupo de ciclismo.

O Paulo estudava história na UFCG e se juntou ao grupo porque queria aprender a andar de bicicleta e participar de um coletivo, sem contar sua paixão por super heróis. Naquela noite, ele e alguns dos Tropeiros se meteram numa guerra de pedradas entre grupos de trombadinhas, rapidamente se tornando o alvo principal. Os outros fugiram enquanto ele caiu da bicicleta com uma pedrada no capacete. Os capitães da areia levaram tudo que ele tinha, menos a fantasia. Sem celular ou bicicleta, às duas da manhã, pareceu um milagre dar de cara com o batmóvel (que, por sinal, era um carro elétrico) e ainda pegar uma carona.

Quem não é fã do Batman? Paulinho era louco por ele desde criança; assistiu todos os documentários sobre o vigilante mascarado de identidade desconhecida que combatia o crime em Gotham City, nos Estados Unidos. Ele tinha essa devoção toda porque o homem morcego não precisava de poderes para ser um herói. Arriscava a vida para proteger os inocentes e indefesos. E, acima de tudo, tinha um código de ética inviolável que o impedia de matar. Vendo seu ídolo pessoalmente, aos poucos foi descobrindo que nem tudo era como ele esperava. O uniforme, por exemplo: nada daquilo de armadura de borracha preta dos documentários; o que o Batman vestia era um elegante traje cinzento feito pelos melhores alfaiates de grifes europeias. Apesar disso, ainda parecia uma fantasia de carnaval. A capa era o mais impressionante, feita de um couro negro delicadíssimo por fora e de um veludo azul marinho por dentro. O perfume que ele usava era um pouco exagerado, enjoativo, provavelmente caríssimo.

Os dois agora estavam olhando a vista noturna da cidade, sentados no topo da pirâmide do Parque do Povo. A fluência do cavaleiro das trevas indicava que deveria haver um homem culto e sagaz por trás da máscara, capaz de falar várias línguas.

— … então eu disse para a Mulher Gato que ela tem que prestar mais atenção em como trata as pessoas — disse Batman, com sua voz propositalmente rouca e séria, num sotaque chiado de estadunidense que aprendeu português com um carioca — Você acredita que na primeira vez que nos vimos, a primeiríssima, ela lambeu meu rosto? É por isso que quase ninguém quer andar com ela.

— Faz sentido, senhor Batman.

— Pode me chamar só de Batman. Ou de Vingança. Ou de Noite. Já que… I am vengeance, I am the night, I am Batman.

E um raio azul partiu o céu ao meio atrás dele.

— Certinho, Batman.

— Enfim, as coisas são complicadas, como pode ver. Não existe Recursos Humanos na vida noturna de Gotham. Só porque ela se chama Mulher Gato não quer dizer que pode lamber as pessoas. Eu sou o Homem Morcego e não ando chupando o sangue de ninguém.

E o assunto morreu. Paulinho estava nervoso e não sabia o que dizer. Só conseguia pensar em agarrar a capa do Batman e esfregar aquele veludo maravilhoso no próprio rosto. Olhou para o gibão de couro grosseiro que havia ganhado de presente e usava como parte de seu uniforme de Tropeiro. Os tropeiros usavam gibão? Talvez estivesse mais para cangaceiro.

— Você teve sua bicicleta roubada, certo?

— Sim, Batman.

— Ah, o crime… esse vírus que infestou cada cidade que visito neste país. Esses vagabundos vão aprender que o crime não compensa.

Paulinho sentiu algo estranho ao ouvir aquilo. Olhou o estrangeiro, literalmente uma lenda urbana poderosíssima, falando essa palavra… “vagabundos”. E então pensou nos trombadinhas que o roubaram. Ele queria atirar pedras de volta, mas não teve coragem. Apesar disso, e apesar de ser muito novo, tinha idade o suficiente para ver que aqueles vagabundos eram crianças, moleques do bairro vizinho ao seu. Entre os marginais e seu ídolo, o rapaz se desencontrou.

Como seria o homem por trás da máscara?

O Batman puxa a sua batcarteira do cinto de utilidades e retira dela dez notas de 100 dólares.

— Tome. Isso é suficiente para comprar outra bicicleta? Não faço ideia do preço de uma.

— Caramba! — Paulinho nunca antes havia visto uma nota de 100 dólares, e jamais imaginaria que possuiria mil dólares alguma vez na vida — É sim! Obrigado, Batman!

O homem morcego examinou o rapaz com o olhar.

— O que você estuda mesmo?

— História — ele ainda estava olhando para o dinheiro em suas mãos.

— Você não pensa em ter seu próprio negócio um dia, garoto?

— Eu acho que vou ser professor.

— E empreender, nada?

Pedrinho não respondeu com palavras, mas com um olhar confuso de quem não entendia direito a própria vida, e menos ainda os rumos que aquela conversa estava tomando. Batman não gostou.

— Deixe-me contar uma coisa: esse mundo não vai te dar nada de mão beijada. É a história de minha vida. Tudo o que eu tenho, lutei muito para conseguir. Você tem que fazer por merecer. Quem não faz não vence na vida e depois fica choramingando por aí. Professores de história, sejam de Gotham ou de Campina Grande, criticam quem tenta transformar o mundo porque são invejosos. Acho muito nobre o ofício do professor, até dou uma garrafa de vinho para os do Robin todo fim de ano, mas quem constrói as coisas são os corajosos, os inovadores.

— Como é?

— Me ouça, garoto. O mundo está cheio de buracos para serem tapados. Ver um problema e criar uma solução não é para qualquer um. Um professor de história vê o índice de desemprego e vai fazer um protesto que não muda nada. Um inovador de verdade cria um iFood, um Uber da vida, bota comida na mesa de milhares de pessoas. Dá dignidade para elas.

Morrendo de nervoso, não conseguiu conter o riso. Agora queria desaparecer, mas preso no topo da pirâmide do parque do povo, só restava a ele escutar aquilo tudo.

— Dignidade?

— Sim, dignidade — o homem morcego reforçou — Quem gera emprego hoje é o empreendedor. Quem não conseguiu ser dono que aproveite a benção de ser empregado. Não dê ouvidos aos esquerdistas que ocupam as escolas do Brazil. Conheço alguns empresários americanos que estão fazendo importantes negócios por aqui para implementar um modelo de educação sem essa nonsense doutrination.

Paulo ouviu muito mais daquilo. Ouviu que o Estado é uma praga, que o Batman ia limpar as cidades da podridão do crime, que o futuro consistia em prisões de alta tecnologia onde os condenados coletam lítio de minas para fazer baterias e silício para fazer microchips, que ele deveria aprender a programar e ingressar numa startup. Esse tipo de conversa.

Talvez um dia ele consiga estufar o o peito e encarar de frente quem falasse coisas do tipo, mas hoje não. Ele ouviu tudo aquilo calado.

Se sentia fraco demais para rebater ou pontuar qualquer coisa. Não era fácil se impor diante daquela figura. Mais do que isso, não era fácil ser forte vendo um ídolo ruir. Ele se sentia em queda também. Uma queda mais dura do que quando caiu da bicicleta após a pedrada, mais cedo naquela mesma madrugada. O Batman era só mais um rico miserável, como muitos outros que ele já havia visto no Brasil. A lenda era só fantasia. Depois, em casa, concluiu que era bom que os Tropeiros nunca tivessem se tornado justiceiros. Mas não deveriam se desfazer: ali eles tinham a chance de ser outra coisa.

2º ato

Herói dos racistas em Campina Grande

Justiceiro mascarado agride trabalhador negro após confundi-lo com criminoso

7 de fevereiro de 2022 — Por Vânia de Sousa Marques, colunista da Revista Empoderadora dos Estudantes (REE)

O atendente de telemarketing Tiago Silva da Rocha, de 28 anos, foi agredido por um justiceiro mascarado na madrugada do dia 6 de fevereiro após ser presumido como criminoso. Tiago e sua namorada, Samara Alves (27), passaram a noite em um bar no bairro da Bela Vista e retornavam para casa quando foram abordados violentamente por um vigilante que afirmam ser o justiceiro norte-americano popularmente conhecido como Batman.

“A gente tava voltando lá do bar, pertinho de casa, pô. Foi só chegar perto de casa que eu ouvi um barulho esquisito e quando olhei para trás um morcegão veio me dando uma voadora”, disse Tiago em entrevista à REE. No vídeo, é possível ver seu rosto inchado e o braço esquerdo quebrado que, junto às duas costelas quebradas, totalizaram os ferimentos sofridos.

“Era o Batman, era mesmo! Com a fantasia, as orelhas e tudo”, diz Samara, namorada de Tiago. “Ele caiu em cima do Tiago, derrubou ele no chão, quebrou o braço dele e veio perguntando com uma voz de fumante o que Tiago queria comigo, por que ele estava me seguindo, se ele era um tarado ou coisa do tipo”.

Quando questionada sobre uma possível razão para essa conclusão precipitada do vigilante, Samara atribuiu a causa ao racismo: “É racismo, puro e simples. A gente tava brigado, normal, eu tava meio sem paciência, ele veio calado atrás de mim. Acho que o Batman viu aquilo e pensou “esse homem negro andando atrás dessa branquela só pode ser um criminoso”. E não pensou duas vezes, nem parou para perguntar antes de quebrar o braço do meu namorado, perguntou só depois”.

“Eu achava que ia morrer”, afirma Tiago. “Já fui enquadrado, várias vezes, por causa da minha cor. Agora nunca imaginei que ia ser espancado por um gringo fedido como aquele. Eu falei pra ele: “cê tá louco?” e ele pra minha mulher “o que uma menina que nem você tá fazendo com um vagabundo que nem esse?”. Esse mundo tá muito louco. Dá vontade de tacar fogo em tudo. Não tenho medo de mais nada”.

Segundo o casal, após a troca de palavras o Batman teria disparado uma bomba de fumaça e corrido na direção oposta. O exame de corpo de delito não encontrou vestígios do DNA do agressor. A única pista no momento é uma amostra de perfume encontrada que possivelmente pertence ao justiceiro mascarado racista. Trata-se da colônia “Sex Panther”, da perfumaria norte-americana Odeon, cujo frasco custa atualmente 700 dólares. Além disso, imagens de câmeras de trânsito identificaram um carro muito similar ao batmóvel, o mesmo encontrado em várias cidades do país desde o mês passado, corroborando com as suspeitas do casal.

O casal teme que o rapaz possa perder o emprego devido aos meses em que não poderá trabalhar. A revista entrou em contato com a empresa de telemarketing para qual Tiago trabalha, mas não obteve resposta. Também foi contatada a Polícia Civil, que afirmou que o crime seria investigado como qualquer outro.

3º ato

No jornal Pinga Sangue, transmitido no horário da janta pela TV Alarde, o apresentador Murilo Muriles estava há desde o começo do programa fazendo uma piada recorrente com o casal de gringos que visitava a Paraíba. Se tratava do bilionário Bruce Wayne e seu marido, Jim Gordon. Wayne era o sucessor do pai, Thomas Wayne, na direção da empresa que leva o sobrenome da família. Era um homem esguio e muito alto, cinquentão. Usava um terno de linho cinza, que na lapela trazia um broche com a bandeira dos Estados Unidos da América e, logo abaixo, outro com a bandeira LGBTQIA+. No clipe da gravata reluzia um elefante vermelho, que o empresário usa para declarar sua filiação ao Partido Republicano dos Estados Unidos. Gordon, por sua vez, era o comissário de polícia da cidade de Gotham. Tinha uma aparência mais discreta: baixo e parrudo, com um vestido azul marinho e olhar desconfiado.

Muriles aproveitava o pico de audiência que foto do casal trazia para exibi-la entre cada notícia, junto a efeitos sonoros de risadas e beijos.

“Já já! É já já! A gente vai trazer… aqui! De primeira mão! O casal de gringos bilionários na Paraíba!”

Mais efeitos sonoros de beijos.

Caro leitor, poupando-lhe de ler a descrição do programa inteiro, ou mesmo da matéria toda exibida no final, seguem os detalhes mais importantes:

Num palco montado no gramado do Almeidão, tradicional estádio de futebol de João Pessoa, estavam o Governador da Paraíba, o Secretário de Segurança Pública da Paraíba, Bruce Wayne, Jim Gordon, um tradutor e um grupo de deputados estaduais — dentre eles, alguns não costumavam usar proteção facial, mas todos ali queriam muito se proteger do odor de um perfume horroroso e se encontravam mascarados.

Diante do palco, depois de uma fileira de fotógrafos, estavam em posição algumas dezenas de policiais, armados e uniformizados com suas fardas de sempre, exceto por um novo adereço: cada um deles utilizava, presa ao pescoço, uma comprida capa de couro negro com estofamento de veludo azul por dentro. Em seguida, se estendia um mar de viaturas, motocicletas, caminhões e ônibus. Todos novos, modelos de veículos elétricos importados das Indústrias Wayne, devidamente adesivados. Ainda havia uma banda marcial que tocou antes dos figurões se pronunciarem.

Nas arquibancadas havia uma multidão de pessoas ansiosas para ver aquela figura extremamente famosa. Não era todo dia que se via um bilionário, muito menos um bilionário gringo gay, muito menos naquelas condições. Alguns gritavam elogios, outros vaiavam, outros simplesmente queriam saber o que diabo era aquilo que estava acontecendo.

“Nós do estado da Paraíba estamos muito satisfeitos com o diálogo que estabelecemos com o senhor Wayne e suas indústrias”, afirmou o Governador em um dos momentos de sua longa fala. “Anos de negociações tornam-se realidade conforme Bruce Wayne e seu marido percorrem o Brasil inaugurando um novo conceito de segurança pública no país e, hoje, na Paraíba. Nossa secretaria de segurança estará trabalhando junto à equipe das empresas Wayne para gerenciar o combate ao crime na Paraíba como o senhor Wayne gerencia a sua própria empresa. E tenho certeza que colheremos importantes frutos nos próximos anos, começando com as duas penitenciárias que iremos construir no interior do estado e que contarão com tecnologias Wayne”. No final, repetiu o slogan: “Por uma Paraíba mais moderna para todos!”.

O Secretário de Segurança Pública foi mais sucinto: “Agradecemos às Indústrias Wayne, na pessoa do senhor Bruce Wayne, pela parceria. Através delas, também obtivemos novos armamentos, viaturas, coletes, munição, tasers, drones, computadores, câmeras de monitoramento e outros equipamentos, além do auxílio logístico, com os quais estamos confiantes de que multiplicaremos nossa produtividade. Até o presente momento, só não conseguimos compreender a utilidade das capas que agora fazem parte do uniforme por algum motivo”.

“Oh bree gah doh ah toe dos”, Wayne arranhou em português.

Por ultimo, vale registrar a fala de um dos deputados, logo no final. O político em questão retirou a máscara, esboçou um grande sorriso e pediu a Bruce Wayne, no microfone, um “abraço hétero”. Retribuindo o sorriso, o bilionário abraça o sujeito, rendendo uma saraivada de fotos e uma salva de palmas. A banda marcial começa a tocar. Fogos de artifício explodem, chacoalhando o céu.

O deputado encara a plateia ensandecida que assistia aquilo se desenrolar e grita:

— Ele pode ser viado… mas é o nosso viado!

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Vinicius Dantas

Isso aqui começou como um lugar para escrever comédia, mas sabe-se lá o que vai virar. Piadas, crônicas, histórias sobre pessoas que existem na minha cabeça.