Juiz ladrão

Vinicius Dantas
3 min readMay 4, 2022

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O juiz caminhava sozinho pelas ruas de Washington D.C. O vento frio lembrava-lhe de sua cidade natal, mas ele sentia falta do calor. Não do clima quente, ou do calor humano que nunca apreciou, mas o calor de seu ego requentado de micro-ondas, aquecido pela simpatia volátil das elites e da classe média brasileira. Mesmo com sua carreira política arruinada no Brasil, era incapaz de viver nessa cidade estadunidense em que não era ninguém. Estava ali apenas de passagem, numa viagem que fazia com sua amante, uma mulher com quem costumava passar noites secretas trocando olhares e beijos sem lábios enquanto os dois vestiam fantasias de peças de xadrez. Ela se vestia de cavalo e ele de peão — a peça que até começa bem mas depois parece que não faz muita coisa, lembrando sua intenção de voto.

Era evidente quando alguém o reconhecia. O sorriso no rosto entregava tudo. Em meio a uma rua vazia de admiradores mas repleta de indiferentes, uma brasileira se aproximava animosamente. Ele sorriu de volta, estufou o peito. Tirou a mão que guardava no bolso e enxugou na calça o suor que sua ansiedade produzia constantemente. Esperou ela cruzar a multidão.

Quando a moça estava prestes a alcançá-lo, o juiz abre os braços. Ela grita para o homem “Quá quá quá! Iiiiiiiiiiiiiih Marreco! Seu cagão!”.

Ah, ele odiava quando aquilo acontecia. Aquelas pessoas malditas, que arruinaram o país e infestaram o mundo todo, especialmente aquele país maravilhoso. Os EUA sim, um país digno, com um povo decente. Se o ignoravam, se o desconheciam, era porque, no fundo, ele era como eles. Bateu outra saudade do Brasil. Ser melhor que os outros é muito melhor que ser igual aos outros, pensou o juiz.

Mas era assim mesmo. Faz parte. A história da elite francesa mostra que os melhores acabam sujeitos a todo tipo de provações e humilhações. Estar no seu lar envolvia ser amado e odiado, a prova final de que não era ninguém. De que ficaria para a história. Cheque mate!

O juiz pensou em sua vida até então. Pensou em seus tempos de colégio, quando fora presidente de sala e passava horas na sala dos professores, tomando café e comendo biscoitos finos. Ou da faculdade, quando foi eleito o vigésimo sétimo melhor estudante da turma. Seus tempos como juiz foram realmente um sonho. Talvez o mais próximo que alguém pode conseguir de ser um rockstar sem ter que ser bom em alguma coisa. O juiz realmente cavalgou cometas e laçou estrelas no auge de sua mediocridade.

Bateu a saudade do Brasil novamente. Talvez as viagens sirvam para isso mesmo. Para dar saudade do lugar onde vivemos.

Após concluir essa série de pensamentos, o juiz finalmente retornou à realidade. A esse ponto, a brasileira já havia lhe dado sete cusparadas, comprado oito tomates numa feirinha de esquina e os arremessado ainda no caminho de volta. Acertou cinco. Quanto à caixa com doze ovos que também comprou, a mulher os quebrou um a um na cabeça do juiz.

Nada disso o despertou de fato. Apenas acordou quando a brasileira foi presa, com um sorriso inabalável no rosto, por sujar a rua com tomates e ovos. O estralo das algemas envolvendo o pulso da mulher foi seu despertador, por algum motivo.

Sonolento, toma ciência de sua condição imunda. Não de toda a profundidade dela, apenas da fina camada de imundície que lhe foi acrescentada nos últimos minutos. Precisava de um banho, pensou. Precisava voltar para o hotel.

Deu um passo, tropeçou e caiu.

Não era de se esperar outra coisa, com tanta polpa de tomate, clara e gema de ovo no chão. Mas não foi apenas naquilo que o juiz tropeçou.

Derrubado e ensopado de vermelho, vê que escorregou numa revista jogada no chão. Não havia reparado antes, mas percebeu que vários a compravam na banca mais próxima.

Era a revista Time do Lula.

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Vinicius Dantas

Isso aqui começou como um lugar para escrever comédia, mas sabe-se lá o que vai virar. Piadas, crônicas, histórias sobre pessoas que existem na minha cabeça.