Massacre da serra elétrica no Cinema do Porto

Vinicius Dantas
4 min readMay 21, 2023

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Registro meu do texto narrado que inicia o filme, no pequeno mas encantador Cinema do Porto
Registro meu do texto narrado que abre o filme, no pequeno mas encantador Cinema do Porto

Estive ontem no Cinema da Fundação, na unidade do Porto Digital. Me senti privilegiado por ver num cinema o filme “O Massacre da serra elétrica” (1974), dirigido por Tobe Hooper. Um clássico, apesar dos limites impostos pela expectativa que um rótulo desses gera.

Foi a minha primeira vez vendo esse filme, com o privilégio de uma boa sala de cinema e de uma audiência compartilhando a experiência comigo. A existência de outras pessoas ali se tornou indispensável, revelando para mim as impressões de jovens vendo o filme quarenta anos depois de sua estreia.

Talvez os outros espectadores concordem comigo quando digo que a primeira metade do filme é mais interessante do que a segunda. Ele começa com o macabro dos túmulos saqueados no cemitério no interior do Texas, com os cadáveres expostos cuidadosa e tenebrosamente pelo autor do crime, até então desconhecido. Por ser um filme de terror e pelo texto introdutório antes do filme, já imaginamos que algo horrível acontecerá com os personagens. O que não impede que uma estranheza seja construída sutilmente no início do filme, quando coisas corriqueiras dão muito errado, ou quando uma moça supersticiosa prevê que os astros estarão agindo negativamente sobre eles.

A cena em que os 5 jovens atravessando o Texas em uma Kombi decidem dar carona para um desconhecido, apesar de sua desconfiança em relação a ele, talvez seja a que mais me tocou. Claro que não é o momento mais brutal do filme, mas a simplicidade da situação de oferecer carona, a compreensível desconfiança inicial e o o desenrolar dos fatos são tão reais que dói.

Quando chegamos ao Leatherface, brutamontes que configura o principal vilão do filme, as coisas começam a ganhar um ar levemente cômico. As primeiras aparições do personagens são genuinamente boas e perturbadoras. O importante paralelo entre as vítimas humanas e o gado, sugerindo (entre muitas outras coisas) que aquele homem não é capaz de dissociar seres humanos de outros animais, funciona muito bem e me fez tanto sofrer junto aos personagens quanto reforçar meus ideais antiespecistas, veganos e afins. Até aí, atribuo o caráter cômico a minha própria imaginação: toda vez que o vilão dava uma martelada na cabeça de um dos personagens eu lembrava imediatamente do golpe na cabeça com um frango de borracha, piada recorrente nos episódios de Monty Python, ou da música engraçadinha “Maxwell’s Silver Hammer”, dos Beatles (recomendo).

O que provocou mais risos na sala do cinema, aí sim culpa talvez da idade do filme, foi o excesso de gritos da protagonista (interpretada por Marilyn Burns) ao ser perseguida, bem como as cenas de perseguição em si. A imagem dela correndo para fora do frame, acompanhada pelo grito que fica mais alto conforme ela se aproxima da câmera, seguida pelo Leatherface e o rosnado da serra elétrica, me lembrou uma corrida de Fórmula 1, com carros passando em alta velocidade acompanhados pelo zumbido dos motores. A repetição da correria e dos gritos cansa um pouco, e as cenas em que o vilão a deixa escapar por um triz parecem um pouco ridículas.

De todo modo, o filme cumpre muito bem com a sensação de que há ali uma ameaça constante, muito difícil de escapar, e que deixa a protagonista em uma posição muito vulnerável. Não é atoa que ela termina o filme sorrindo, mas encharcada no próprio sangue. Pensando no que acontece na segunda metade da obra, é terrível imaginar como não havia para onde fugir. Todos ali representavam uma ameaça, fazendo as duas metades do filme casarem muito bem. Por que, no início do filme, o rapaz do posto de gasolina limpa o para-brisas da Kombi exaustivamente, mas não a mancha de sangue na lateral da lataria? Um tempo depois teremos nossas hipóteses quanto a isso…

Um ponto altíssimo é a interpretação da protagonista. Marilyn Burns é muito linda e muito, mas muito boa atriz. A expressão de horror e a forma como ela é filmada, descrevendo pânico e claustrofobia, são de um impacto que não se vê tanto em filmes de terror atuais. Talvez hoje em dia a ênfase seja maior num espetáculo visual e no susto (”jump scare”) do que no sentimento de horror dos personagens. Não é apenas nos momentos de horror que ela brilha, mas também nos diálogos corriqueiros com seu irmão (interpretado pelo também ótimo Paul Partain).

Os vilões me fazem pensar (SPOILER). Seria uma coincidência que eles sejam pessoas diretamente afetadas pela demissão estrutural que a modernização das técnicas de abate proporcionou, sendo as vítimas desse filme descendentes de pecuaristas endinheirados? Apesar de ser um clichê dos filmes de terror as famílias perturbadoras, com seus hábitos sádicos que conseguem esconder do resto do mundo, acho que há muita margem para atualização desse tema. Hoje, o sadismo é pouco escondido, existe em plena luz do sol, sendo fácil de encontrar em gritos e palavras de ordem explicitamente fascistas.

Me incomodou saber que é um clássico. Na cena final do filme, que eu sabia que era icônica, escuto alguém atrás de mim comentando a mesma coisa. E fica por isso, vemos aí o clássico, a cena que muitos poderiam estar esperando. Não me pareceu um momento de catarse, mas de “ah, olha ela aí”. Talvez o tempo tenha castigado um pouco a metade final do filme, talvez seja apenas aquela sessão, naquele dia, ou talvez tenha sido deixar a aura do “clássico” ficar no caminho da experiência.

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Vinicius Dantas

Isso aqui começou como um lugar para escrever comédia, mas sabe-se lá o que vai virar. Piadas, crônicas, histórias sobre pessoas que existem na minha cabeça.