O ator feio

Vinicius Dantas
4 min readApr 6, 2022

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Carlos sonhava em ser ator. É claro, muitas pessoas sonham. Mas Carlos era desagradavelmente privilegiado e, tão logo sonhou, conseguiu.

O amigo de um amigo seu era metido com um grupo de comédia e eles estavam gravando uma esquete de humor. Não era Porta dos Fundos, mas era melhor que nada. Tudo que lhe pediram para concorrer ao papel foi seu nome, sua idade e um retrato.

Eis que o amigo intermediário aparece com o roteiro de sua parte e entrega-lhe para que decore e ensaie. As gravações começavam no dia seguinte pela manhã.

A cena era muitíssimo simples. Não havia contexto algum. Carlos só viu que nela um homem (Flávio, ele) discutia brevemente com uma mulher (Graça).

Era mais ou menos assim:

O cenário, uma rua comum do centro de Campina Grande. Um carro para na frente de um restaurante. Graça sai do restaurante, furiosa, e Flávio a segue.

Graça: Seu miserável! Suma de minha vida! Suma!

Flávio: Ora, você não me faça passar vergonha!

Graça (rindo de deboche): Ah, olhe só para você! Além de ser um feio, é um cretino!

Ela dá um tapa no rosto de Flávio, entra no carro e o motorista a leva embora.

Como era pouca coisa, uma folha de papel com apenas um lado escrito, Carlos passou os olhos e estranhou o amigo.

— Foi isso que me deram?

— Foi, uai.

— Mas o que ele tem a ver comigo?

— Não precisa ter a ver. É atuação, você só finge.

— Só que ela chama o personagem de feio. E eu não sou feio. Não vai fazer o menor sentido!

Carlos estava em pé. O amigo, pego de surpresa pela reação, estava sentado mas logo se levantou e olhou para a porta. Mesmo a sala sendo claustrofóbica, a saída parecia inalcançável.

— Carlos… — arriscou alguns passos — você é feio.

— Como assim?

— Nada. Deixa pra lá.

— Ah, me diga, faça-me o favor!

— Ninguém nunca te contou?

— Não!

O amigo, desesperado para sair dali, se limitou a dizer:

— Que pena.

Mas Carlos estava indignado e não sabia parar:

— Você é feio?

— Mais ou menos.

— Você é lindo! — o feio rebateu, quase apaixonado.

— Aí é que você se equivoca — diz o amigo, já no pé da porta — Olha o tamanho da minha testa. Quase nada! Como uma pessoa pode ser careca e sem testa ao mesmo tempo?

Carlos se escorou na parede, respirou fundo. Pôs a mão na face, dramaticamente.

— Vou recusar o papel.

— Mas seu sonho não era ser ator?

— Sonhei isso há três semanas… — e acrescentou, acariciando o próprio rosto com as costas da mão — me achei belo a vida toda.

— Você pode se achar bonito. É só você ir na gravação e fingir que é feio. As pessoas vão acreditar.

O amigo falou isso e logo foi embora.

Carlos decidiu ir na gravação e tirar satisfação. De manhã cedo, apareceu na rua do centro onde iriam filmar. Percebeu um pequeno grupo de estudantes de Arte e Mídia abarrotados, operador de câmera, técnico de som, alguém cuidando da luz, uma atriz sendo maquiada, entre outros. Perguntou a um qualquer quem era o diretor.

Encontrado o diretor, estufou o peito e disse:

— Bom dia, eu sou…

— Feio e cretino! — disse o diretor, assim que olhou para Carlos — Porra, esqueci o nome do seu personagem… Enfim, você chegou, ótimo. Carminha tá ali se maquiando se você quiser repassar sua fala com ela. Se tiver fome tem bolo, não me pergunte do quê. Bolo de bolo.

— Não, senhor, eu queria saber que história é essa de que… eu sou feio — falava sem acreditar, quase perguntando.

— Você não sabia?

E ele respondeu, convicto:

— Não sabia e não sei!

— Então por que se inscreveu para interpretar o feio cretino?

— Não fui eu, foi meu… Olhe, só quero que o senhor me explique qual a propriedade que vocês tem para virem me chamar de feio assim, como se fosse algo certo.

Uma brisa de compreensão atingiu o rosto do diretor.

— Ah, tá bem. Faz um favor, você pode me dar seu WhatsApp?

Carlos deu.

— Vou mandar teu contato para um amigo meu que vai te colocar num grupo, aí lá você pode tirar satisfação. Pode esperar ali no canto.

Um pouco confuso, o homem esperou. Alguns minutos depois, recebeu uma notificação. Um número desconhecido o havia adicionado num grupo intitulado “Atores Feios”. Enquanto tentava entender aquilo, uma mensagem apareceu.

Alguém dizia: “Olha só! Esse até que é bonito!”

Outro respondia: “É mesmo!”.

Carlos tocou no número do primeiro a falar e olhou a foto de perfil. Voltou ao chat do grupo e escreveu:

— Poxa, obrigado! Você também não é de se jogar fora!

Um terceiro número acrescentou sadicamente: “Além de bonito tem cara de cafajeste, quase um cretino”.

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Vinicius Dantas

Isso aqui começou como um lugar para escrever comédia, mas sabe-se lá o que vai virar. Piadas, crônicas, histórias sobre pessoas que existem na minha cabeça.